sábado, 31 de março de 2012

Os dias lindos - a sensibilidade de Drummond

OS DIAS LINDOS
Não basta sentir a chegada dos dias lindos. É necessário proclamar: "Os dias ficaram lindos".
Acontece em abril, nessa curva do mês que descamba para a segunda metade. Os boletins metorológicos não lembraram de anunciá-lo em linguagem especial. Nenhuma autoridade, munida de organismo publicitário, tirou partido do acontecimento. Discretos, silenciosos, chegaram os dias lindos.
E aboliram, sem providências drásticas, o estatuto do calor. A temperatura ficou amena, conduzindo à redução do vestuário. Protege-se um tudo-nada o corpo, que vivia por aí exposto e suado, bufando contrra os excessos da natureza. Sob esse mínimo agasalho, a pele contente recebe a visita dos dias lindos.
A cor. Redescobrimos o azul correto, o azul azul, que há meses se depedaçara em manchas cinzentas no branco sujo do espaço. O azul reconstituiu-se na luz filtrada, decantada, que leva também os matizes empobrecidos das coisas naturais e das fabricadas. A cor é mais cor, na pureza deste ar que ousa desafiar os vapores, emanações e fuligens da era tecnológica. E o raio de sol benevolente, pousando no objeto, tem alguma coisa de carícia.
O ar. Ficou mais leve, ou nós é que nos tornamos pesadões, movendo-nos com desembaraço, quando, antes, andar era uma tarefa dividida entre o sacrifício e o tédio? Tornou-se quase voluptuoso andar pelo gosto de andar, captando os sinais inconfundíveis da presença dos dias lindos.
Foi certamente num dia como estes que Cecília Meireles escreveu: "A doçura maior da vida flui na luz do sol, quando se está em silêncio. Até os urubus são belos, no largo círculo dos dias sossegados". Porque a primeira consequência da combinação de azul e  leveza de ar é o sossego que baixa sobre nosso estoque de problemas. Eles não deixam de existir. Mas fica mais fácil carregá-los.
Então é preciso fazer justiça aos dias lindos, oferecer-lhes nossa gratidão. Será egoísmo curti-los na moita, deixando de comentar com os amigos e até com desconhecidos, que por acaso ainda não perceberam o raro presente de abril: "Repare como o dia está lindo." Não precisa botar ênfase na exclamação. Pode até ser baixinho, como quem transmite boato e não deseja comprometer-se com a segurança nacional. Mesmo assim, a afirmação pega. Não só o dia fica mais lindo, como também o ouvinte, quem sabe se distraído ou de lenta percepção sensorial, ganha a chance de descobri-lo igualmente. Descobre e passa  adiante a informação.
A reação em cadeia pode contribuir para amenizar um tanto o que eu chamo de desconcerto do mundo. De onde se concluí: deixar de lado, mesmo que por instantes, o peso dos acontecimentos mundiais, trágicos, esmagadores, para degustar a finura da atmosfera e a  limpidez das imagens recortadas na luz, é um passo dado para reduzir o desconcerto, na medida em que a boa disposição de espírito de cada um pode servir de prefácio, ou rascunho de prefácio, à pacificação, ou relativa pacificação. Em vez de alienação, portanto, o prazer dos dias lindos é terapia indireta.
Pode ser que o desconhecido lhe responda com um palavrão, desses em moda na sociedade mais fina. Não faz mal. Não se ofenda. Ele descarregou sobre sua obsrevação amical o azedume que ameaçava corroê-lo no íntimo. Livre desse fel, talvez se habilite a olhar também para o céu e a descobrir mesmo certa beleza esvoaçante no urubu. De qualquer modo, foi avisado. Já sabe o que estava perdendo: a consciência de que certos dias de abril e maio são mais lindos do que outros dias em geral, e nos integram num conjunto harmonioso, em que somos ao mesmo tempo ar, luz, suavidade e gente.
(ANDRADE, Carlos Drummond de. Os dias lindos. Rio de janeiro: José Olympio, 1977, p. 96-98)

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"Há muitas possibilidades na mente do principiante, mas poucas na do perito" (Suzuki, Shunryu).